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Os últimos relatórios do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) alertam para a urgência de atuar em duas vertentes. Por um lado, na rápida redução das emissões globais líquidas de dióxido de carbono e outros gases de efeito de estufa, visando atingir o zero (líquido) de emissões em 2050, na perspetiva de limitar o aquecimento global a 1,5°C até ao final deste século. Por outro lado, na adaptação das sociedades humanas a efeitos que, independentemente das ações anteriores, persistirão por séculos e milénios e continuarão a causar alterações adicionais de longo prazo no sistema climático. Por um motivo ou outro, serão necessárias transições sem precedentes em todos os aspetos da sociedade, por exemplo, no âmbito da energia, os usos do território e ecossistemas, zonas urbanas e infraestruturas, e indústria.

O ciclo hidrológico, no seu conjunto, é afetado por alterações no sistema climático, uma vez que faz parte dele. Até há algumas décadas, as variáveis climáticas que sustentam a gestão da água (por exemplo, a precipitação) desenharam um quadro estável (considerado exógeno) a longo prazo, apesar da variabilidade intrínseca nessas variáveis, em períodos curtos. O desequilíbrio, de origem antrópica, do sistema climático erode os fundamentos da gestão tradicional da água, ao volatilizar a base de informação em que se baseia. Por outro lado, não é possível conceber hoje uma política da água à margem das estratégias para reduzir as emissões de gases de efeito de estufa (GEE), na tentativa de mitigar os seus efeitos no clima e adaptar as sociedades às mudanças já em progresso.

A política da água deve responder à urgência de agir assertivamente para prevenir e evitar o agravamento dos problemas, tendo em consideração o aumento da incerteza decorrente de mudanças sem precedentes e da globalidade simultânea dessas mudanças, o que realimenta a incerteza.

Para abordar a política da água neste contexto, podemos restringir a esfera do debate com base nalgumas certezas e intuições. Entre as primeiras, como já observado acima, inclui-se a necessidade urgente de limitar as emissões de GEE no curto prazo, com as consequentes implicações para o modelo baseado na energia fóssil e, portanto, para todo o sistema de produção e consumo, bem como para o regime de aquisição de riqueza (e poder). Além disso, é urgente adotar medidas preventivas face aos efeitos inevitáveis das alterações climáticas, como secas, inundações fluviais ou costeiras, extinção de espécies, etc.

Quanto às últimas, com base na intuição de que as práticas - e as abordagens teóricas que as sustentam - que levaram à perturbação do sistema climático global não podem fazer parte da solução, propomos explorar outras formas de ação, baseadas no reconhecimento da complexidade dos socio-ecossistemas, que possibilitem a transição para modelos de gestão da água compatíveis com a manutenção das funções vitais do planeta.

Discutir as políticas da água à luz de tais certezas e intuições é particularmente urgente na Península Ibérica, onde, como em todos os países do Mediterrâneo, as mudanças se farão sentir - já estão afetando – de forma particularmente intensa na redução dos recursos hídricos disponíveis e maior intensidade de eventos climáticos extremos, como secas e chuvas torrenciais. O XI Congresso Ibérico de Gestão e Planeamento da Água (XICIGPA) pretende contribuir para este debate.

Falar em transição hídrica exige um exercício de antecipação e prefiguração de possíveis cenários futuros. Para onde queremos caminhar? O que devemos manter ou alcançar prioritariamente? O que podemos ou teremos que sacrificar? No XICIGPA, propomos abordar separadamente dois aspetos relacionados com estas questões. Por um lado, como projetar uma transição justa, que preserve direitos fundamentais como o direito humano à água e ao saneamento, que reparta equitativamente benefícios, custos e riscos da gestão da água, e proteja os grupos mais vulneráveis da sociedade. A perspetiva de uma menor disponibilidade de água para uso humano remete diretamente para uma nova repartição da água e importantes transformações nas políticas setoriais e territoriais.

Por outro lado, partimos da convicção de que os atuais modelos de governança não são os adequados para enfrentar a indeterminação inerente a um processo de mudança global, aberto. Se existe a possibilidade de influenciar racionalmente o processo de mudança com critérios de justiça global, então é essencial criar novos modelos de governança que sejam mais democráticos e mais eficazes na preservação dos valores da proteção da vida, na repartição justa de encargos, benefícios e liberdade, que assumimos como nossa. O contexto de crescente incerteza e risco, de complexidade irredutível dos fenómenos e a relevância dos valores em jogo exigem novas instituições e procedimentos.

Apesar da instabilidade de origem antrópica causada nos sistemas vitais do planeta, a natureza apresenta – em comparação com artefactos técnicos com os quais se pretende substituí-la - uma enorme capacidade de funcionamento autónomo que podemos aproveitar sem comprometer a sua sobrevivência. O rótulo comum “soluções baseadas na natureza” engloba um conjunto de ideias e projetos que perseguem o aproveitamento pelos humanos de processos naturais sem os alterar substancialmente, superando a visão tradicional que impera no Ocidente, de domínio da natureza. Nessa perspetiva, os chamados serviços ecossistémicos assumem uma nova dimensão, ou seja, a contribuição dos ecossistemas para o bem-estar humano, que pode (e deve) ser gerido mantendo o bom funcionamento dos sistemas naturais, e facilitam a gestão mais resiliente da água face às alterações climáticas e outros riscos.

Por último, o XICIGPA oferece a possibilidade de concretizar as ideias e debates identificados acima, visando promover uma transição hídrica justa, garantir uma governança democrática e eficaz, e preservar o bom estado dos ecossistemas aquáticos (e terrestres, que lhes estão associados), com o fim de obter os benefícios da sua contribuição para o bem-estar humano. Assim, queremos promover, no XICIGPA, a discussão dos trabalhos em curso de revisão dos planos de gestão das bacias hidrográficas, bem como as diretivas que regulam a política europeia da água.